TU ÉS O GLORIOSO – 18
Por Auriel de Almeida – Historiador
Dentre tantas decisões memoráveis disputadas pelo Glorioso, a final do Campeonato Carioca de 1957, conquistado com uma goleada sonora diante de um superconfiante Fluminense, certamente está na lista de favoritas de todo torcedor, mesmo entre aqueles que sequer a viram. A partida, além do resultado maravilhoso, ficou marcada como o “cartão de visitas” de Mané Garrincha para o Brasil – e o craque logo se tornaria não só o maior ídolo do Botafogo como, para quase todos, atrás apenas de Pelé como ídolo maior da Seleção Brasileira, onde seria campeão mundial no ano seguinte.
A década de 50 vinha sendo complicada para o Alvinegro, com posições apenas medianas nos campeonatos estaduais e regionais. Para reverter esse quadro a diretoria resolveu abrir os cofres em 1956, na chamada “Política do Supertime”, e montou um grande esquadrão, cujo carro chefe era Didi – esperando ainda que Garrincha, revelado em 1953, pudesse finalmente brilhar ao lado de companheiros à altura. Contudo, o “Supertime” não decolou naquele ano, ficando apenas com um terceiro lugar. E mesmo que no papel o Botafogo fosse respeitável, todos olhavam com desconfiança para o clube em 1957.
O Fluminense, ao contrário, tinha a moral elevadíssima. Havia conquistado no primeiro semestre o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, apelidado de Rio-São Paulo, o campeonato mais disputado no país – para muitos, moralmente, era um campeonato brasileiro – e caminhou por todo Campeonato Carioca na dianteira.
Sem muito alarde, o Botafogo vinha atrás, e os dois rivais chegaram à última rodada, onde se enfrentariam, com apenas um ponto de diferença. Embora a tabela não mentisse sobre o equilíbrio entre as duas equipes, a opinião da torcida e imprensa em geral era uma só: o Flu era favoritíssimo. E o clube das Laranjeiras foi tomado por um excesso de confiança, evidente na fala de sua equipe antes da partida.
Pirillo, campeão como jogador pelo Botafogo em 1948 e agora técnico do rival, afirmou que só mesmo um megatime derrubaria o Fluminense: “nós podemos até perder, mas botem na nossa frente um super-esquadrão, senão…”. Escurinho, atacante tricolor, achava que o título seria sopa para quem já venceu o torneio regional: “Nos já ganhamos o Rio-São Paulo. Ganhar um Carioca, e com o jeito que o time está, não pode ser mais difícil”. O zagueiro Clóvis lembrava que o Flu liderara o campeonato de cabo a rabo: “Não conseguiram tirar a gente da frente até hoje, não vai ser amanhã que vão conseguir”. O único comedido foi Telê Santana: “O Botafogo está preparado para vencer, só para vencer, e nada mais do que vencer. Quando se enfrenta um time assim as coisas ficam mais difíceis”. Seria o único a ter razão.
Mas o pecado mortal da confiança foi cometido pela diretoria tricolor, que antes do jogo publicou em jornais o anúncio da festa do título. Nílton Santos fez questão de levar o recorte ao vestiário para motivar seus companheiros, e um dos mais irritados com o disparate foi Garrincha. O craque arrebentaria no jogo.
O JOGO
Verdade seja dita, se o clima de “já ganhou” dos tricolores era enorme, igualmente grande era o tamanho da pulga atrás da orelha que os alvinegros sentiam antes do jogo – afinal, se o “Supertime” fracassou no ano anterior, como se comportariam os jogadores, psicologicamente, para uma decisão?
Mas ao menos um torcedor estava confiante naquele jogo – Carlito Rocha, que havia sonhado que o Botafogo golearia o Fluminense. E durante todo o dia, interpretando sinais que só ele entendia, estava convencido de que Deus estava do lado do Glorioso.
Rapidamente as dúvidas se esvaíram. Logo no primeiro ataque alvinegro Quarentinha, Édson, Garrincha e Paulinho Valentim trocaram passes, e o último foi derrubado na lateral da área. Na cobrança de falta, Didi cruzou para Quarentinha, que tentou uma meia-bicicleta e furou, mas Paulinho pegou a sobra e empurrou para o gol: 1 a 0 para o Glorioso, com três minutos de jogo.
Embora já tivesse o resultado que precisava, o Botafogo aproveitou o bom momento e seguiu atacando, deixando o rival perdido. Na melhor das chances Garrincha deixou Altair para trás – aliás, o bom zagueiro tricolor tomaria um baile de Mané o jogo todo – e deixou Paulinho na cara do gol, mas antes que o atacante chutasse o juiz já marcava impedimento. Em uma rara chance do Flu, em cobrança de falta, Thomé conseguiu rechaçar, e no contra-ataque Garrincha quase fez o segundo, mas Altair conseguiu travar o chute.
Após mais de meia hora de bombardeio alvinegro, o segundo tento saiu. Garrincha passou como quis por Pinheiro e Clóvis e encobriu Castilho, que saía do gol. Paulinho, entrando pela esquerda, pulou sobre a bola, que sairia, e fez de joelho: 2 a 0. E poucos minutos depois Paulinho marcaria de novo: Nílton Santos cruzou na medida para o seu colega, que acertou uma bela bicicleta, no ângulo. Com 3 a 0 no placar, o primeiro tempo foi encerrado. O Glorioso era o senhor absoluto do jogo – dizer que estava com a mão na taça era pouco.
O Fluminense, até então um desastre, melhorou na segunda etapa, e ao menos conseguiu jogar futebol. Após uma pequena pressão sobre um Botafogo relaxado, o Tricolor conseguiu um gol: Telê deu belo passe para Escurinho, que chutou forte. Adalberto espalmou e o próprio Escurinho pegou o rebote, de cabeça, diminuindo o placar: 3 a 1. Mas nem deu para o Flu sonhar, pois em quatro minutos Paulinho, impossível, fez mais um, após lindo passe de Didi. O jogador recebeu, girou, enganou Pinheiro que ficou no chão e chutou no canto. Com 4 a 1 no placar, a torcida já comemorava o título.
Mas faltava o gol de Garrincha, que fazia um partidaço. O craque recebeu lançamento de Pampolini pela direita, ganhou na corrida de Clóvis, invadiu a área e chutou cruzado: 5 a 1. E para se consagrar como o senhor das assistências na partida, Mané passou de novo pelos seus defensores, já arrasados, e cruzou para Paulinho fazer o sexto, em autêntico déjà vu.
Nessa altura o tricolor Telê Santana já pedia aos rivais “Já chega, p…! Vocês já são campeões, parem de nos desmoralizar!”. E talvez atendendo ao pedido do rival, a fábrica de gols fechou. O Fluminense passou a atacar, e conseguiu o segundo gol de honra com Waldo, de cabeça, no apagar das luzes. Fim de jogo, 6 a 2 para o Glorioso.
Após a partida Didi caminhou, de uniforme, do Maracanã até sua casa. No caminho parou na sede do clube e vestiu o Manequinho com a camisa do time – tudo parte de uma promessa feita pelo maestro, que contratado a peso de ouro no ano anterior afirmou que “precisava muito daquele título” para mostrar a que veio. A atitude do ídolo inaugurou no Alvinegro a tradição de vestir o mascote com o uniforme.
Além do título, a inesquecível goleada garantiu de uma tacada só outras honrarias ao Botafogo. Os cinco gols de Paulinho Valentim fizeram-no artilheiro da competição, com 22 gols – Dida, do Flamengo, tinha 20. O Botafogo passou a ter ainda o melhor ataque do campeonato, superando o Flamengo, e a melhor defesa do campeonato, acabando com a marca do Fluminense. E, até hoje, a vitória é a maior em uma decisão de Campeonato Carioca. Coisas do Botafogo.
== Ficha técnica ==
Domingo, 22 de dezembro de 1957
Botafogo 6 x 2 Fluminense – Local: Estádio Jornalista Mário Filho (Maracanã)
Campeonato Carioca – 2º Turno
Botafogo: Adalberto, Thomé e Nílton Santos; Beto, Servílio e Pampolini; Garrincha, Didi, Paulinho Valentim, Édson e Quarentinha. Técnico: João Saldanha.
Fluminense: Castilho, Cacá e Pinheiro; Jair Santana, Clóvis e Altair; Telê Santana, Jair Francisco, Waldo, Róbson e Escurinho. Técnico: Sylvio Pirillo.
Árbitro: Alberto da Gama Malcher (DF).
Gols: Paulinho aos 3/1ºT, 35/1ºT e 42/1ºT; Escurinho aos 5/2ºT, Paulinho aos 9/2ºT, Garrincha aos 12/2ºT, Paulinho aos 23/2ºT e Waldo aos 39/2ºT.
Público: 89.100
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